sábado, março 02, 2013

"Bactérias" do outro mundo


(Carl Woese, 1928-2012. Foto: Don Hame)

Na parte final da Guerra dos Mundos de H.G. Wells, o narrador, referindo-se aos invasores marcianos que sucumbiram apenas às bactérias do nosso planeta, afirma (tradução minha) "Mas não há bactérias em Marte e, assim que estes invasores [marcianos] chegaram, eles beberam e comeram, os nossos aliados microscópicos começaram a derrotá-los.". Isto corresponde ao nosso imaginário sobre as bactérias: organismos "invisíveis" e perigosos.
Mas há outra característica que muitas partilham: a resistência a condições extremas. No entanto muitas das resistentes, as arquebactérias, não são verdadeiras bactérias. Podem ser consideradas bactérias no sentido celular, ou seja, são procarióticas (células simples sem núcleo) ao contrário das nossas, eucarióticas (com núcleo, contendo os cromossomas). É ao nível molecular que se encontram as diferenças mais marcantes que as colocam tão distantes filogeneticamente das bactérias verdadeiras (eubactérias) como os organismos eucarióticos (animais e plantas, por exemplo).
Esta distinção deve-se ao trabalho pioneiro de Carl Woese, infelizmente falecido recentemente no final de 2012. Woese aplicou as técnicas de sequenciação de DNA para determinar a sequência do RNA ribossomal, existente em todos os seres vivos, e compará-la entre espécies bacterianas. Com esta abordagem o que Woese fez foi reescrever toda a história evolutiva dos procariotas porque os dois sistemas de classificação (clássico, baseado em características morfológicas e bioquímicas, e o molecular, de Woese) coincidiam em muitos casos excepto num grupo de "bactérias", as arquebactérias, cujas sequências eram tão diferentes como as nossas são das verdadeiras bactérias. Eis o contributo revolucionário de Woese, a composição de uma molécula, o RNA ribossomal, foi usada como uma medida da evolução biológica, possibilitando o seu uso na classificação dos seres vivos.
Apesar dos dados moleculares, apoiando a separação das arquebactérias das eubactérias, serem tão fortes há características mais "clássicas" que as separam. As arquebactérias são organismos "do outro mundo" porque habitam fontes hidrotermais, em alguns casos com temperaturas acima dos 100ºC ou com acidez perto do limite da escala de pH e ambientes com concentrações saturantes de sal. Algumas até são 6000 vezes mais resistentes a radiações do que seres humanos. Bom, se não há mesmo bactérias em Marte, como disse Wells, não é pela falta de adaptação às condições do planeta vermelho.

Publicado no Correio do Minho (28/2/13) e acessível na página da Escola de Ciências da UMinho.

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