domingo, junho 11, 2006
Estou a chegar ao fim da peregrinação
Uma visão peculiar da evolução em que, tomando-se como ponto de partida o ser humano moderno, se vai "caminhando" para trás, passando-se por encontros nos pontos de divergência evolutiva em que se encontra o antepassado comum (designado concestor de common ancestor). É esta a estrutura do mais recente livro de Richard Dawkins, The Ancestor's Tale; A Pilgrimage to the Dawn of Life, Phoenix, 2004. São 39 os encontros (rendez-vous) até às eubactérias. O modelo foi tirado dos Contos de Canterbury de Geoffrey Chaucer, peregrinação em que cada peregrino conta dois contos dos quais se tiram lições morais. Em tudo, R. Dawkins obedece a este "modelo": a cada rendez-vous conta histórias respeitantes aos organismos e ao grupo filogenético que acaba de se nos reunir e dos quais ficamos a saber um pouco mais e tiramos lições (não são morais mas sobre o sentido da evolução, da selecção natural, biologia molecular e de história natural).
Quando percorria as páginas do rendez-vous 38 referente ao encontro dos eucariontes com as arquebactérias, senti duma maneira nova a longa caminhada já percorrida desde os encontros com outros primatas, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes, fungos, plantas.... Será pela abordagem (história contada em sentido cronológico inverso o que nos obriga a repensar e reestruturar tudo aquilo que sabíamos), pela escrita clara, precisa e rigorosa (as descrições dos átomos e respectivos isótopos e o seu percurso no planeta quando explica os métodos de datação com base nos isótopos radioactivos são sublimes) e até pela extensão (cerca de 600 páginas na versão paperback inglesa) que nos leva a estar "mergulhados" nesta lenta peregrinação ao longo de muitas sessões de leitura e ter alguma percepção da escala de tempo geológico (demasiado grande para a nossa curta existência como indivíduos e espécie) e também tomar consciência dos caminhos que a evolução trilhou. Há muitos rendez-vous em que a data e até os organismos com que nos encontramos não estão bem determinados, em especial para os últimos, ou seja, nas primeiras bifurcações evolutivas. Nestes casos, R. Dawkins dá-nos uma visão mais pessoal em conjunto com reflexões sobre os métodos de estudo em paleontologia: registo fóssil, datação radioactiva e abordagens moleculares de homologias de sequência entre genes e proteínas (está sempre presente o cruzamento de dados entre as abordagens "clássicas" e moleculares). Um exemplo é a explosão do Câmbrico em que a datação molecular não "concorda" com os outros métodos porque para acontecimentos muito antigos (mais de 500 milhões de anos), os erros dos métodos dão margens que, mesmo geologicamente, não são de desprezar. Aqui a grande discussão é entre a ausência de explosão (a diversidade que aparentemente surge neste período virá de facto de um passado que não deixou registo fóssil), explosão de diversidade (a diversidade surgiu de um dia para o outro na escala geológica) defendida por Stephen Jay Gould (A Vida é Bela, Gradiva) e o meio termo que se baseia precisamente nas margens de erro das datações. De uma maneira talvez pouco sensacionalista (pelo menos para mim após a leitura, há alguns anos, do livro de S.J. Gould com a sua capacidade de fascinar), mas eventualmente mais realística, R. Dawkins rejeita a hipótese da explosão.
Os aspectos distintivos dos seres que se encontram, à medida que se percorre o tempo para trás, são cada vez mais em pequena escala. Por exemplo, antes do encontro com os Sauropsides (englobando aves e os répteis como cobras, camaleões, crocodilos e tartarugas), encontramos organismos com características mistas, "macroscópicas", de mamíferos e répteis como a existência de cloaca, mandíbula inferior de um só osso, pêlo e postura de ovos. No encontro com as arquebactérias, as características já são a existência de núcleo e outros organelos nas células. Agora que estou em Canterbury (nesta parte final da peregrinação não há rendez-vous, é a origem da vida), a discussão anda à volta do primeiro replicador; a primeira molécula que, ainda sem existência de sistemas celulares, tem a capacidade de produzir cópias de si própria. Ou seja, no fim (início da história natural) temos química. Aqui a discussão feita por R. Dawkins sobre o mundo de RNA é à altura daquilo que nos habituou. A caracterização que faz do primeiro replicador é simplesmente notável. Está lá tudo: o erro (sem o erro na cópia não há variabilidade e sem esta não há evolução pois não há possibilidade de adaptação às condições ambientais em mudança), os constrangimentos das dimensões dos genomas (o que explica porque é que os genomas de RNA estão confinados a vírus devido à elevada taxa de erro de cópia do RNA) e o problema do ovo e da galinha para o primeiro replicador (a necessidade de proteínas para a replicação do DNA e a necessidade de DNA para haver proteínas).
Poder-se-à criticar que a história natural contada por Dawkins não é novidade, sendo a única originalidade o facto de ser contada ao contrário (o que acho que já é interessante por causa da nova perspectiva que isso provoca). No entanto, as histórias dos peregrinos que contavam na obra de Chaucer são aqui utilizadas como pretexto para reflexões sobre história natural e as abordagens técnicas em paleontologia, que neste contexto adquirem um sentido que nunca tinha experimentado.
A ler, absolutamente.
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