segunda-feira, outubro 10, 2005

Vírus "ressuscitado"


A palavra ressuscitado é demasiado forte, pois implica regressar à vida e isto é coisa que não se aplica aos vírus. Mas não deixei de pensar nisso ao ler este artigo (Tumpey et al., 2005. Science 310: 77-80). Neste trabalho, os autores recuperaram RNA genómico do vírus da gripe que provocou a pandemia de 1918 a partir pulmões preservados em formalina de autópsias de pacientes e de pulmões de cadáveres que estavam enterrados no Alaska em solo gelado. Após sequenciação do seu genoma, determinaram a existência de 8 sequências genómicas codificantes tal como, obviamente, os seus "parentes" Influenza actuais.

Por genética reversa criaram, a partir duma estirpe viral actual, uma estirpe portadora das sequências genómicas da estirpe da pandemia de 1918 (mais uma vez reforço as aspas do ressuscitado do título uma vez que a recriação do vírus não é perfeita pois faltam as sequências das extremidades 3' e 5' do seu genoma que, não sendo codificantes, poderão regular a expressão dos genes virais e, assim, influenciar a replicação viral). Criaram em simultâneo outras estirpes recombinantes, contendo um ou mais dos genes da estirpe de 1918. Em laboratório, utilizando hospedeiros como células de rim de cão e ovos de galinha com embrião, testaram a replicação destas estirpes. O modelo que usaram para testar a patogenicidade foi o ratinho, e verificaram que a estirpe criada é muito mais virulenta que as actuais (até 39000 vezes). Por comparação dos dados de patogenicidade e replicação, concluiram que os genes codificantes para uma proteína do envelope viral (hemaglutinina) e os codificantes para a RNA polimerase são essenciais para a virulência.

Noutro trabalho (Taubenberger et al., 2005. Nature 437: 889-893), foram analisadas as sequências da polimerase do vírus de 1918 (também estudadas no trabalho de Tumpey e colaboradores) e comparadas com as de aves. A elevada homologia sugeriu que estas sequências virais têm origem em hospedeiros de aves e que a sua capacidade de transmissão a humanos se deveu a esta adaptação do vírus e não à recombinação entre estirpes virais humana e de ave coexistindo na mesma célula hospedeira humana. Identificaram mudanças de aminoácidos na polimerase por comparação com estirpes actuais que são semelhantes às apresentadas pela estirpe H5N1 responsável pela actual gripe das aves que já provocou a morte a cerca de 60 pessoas na Ásia. Ou seja, parece que esta estirpe da gripe das aves está a seguir o caminho evolutivo que leva à capacidade de transmissão a humanos com elevada virulência.

As vacinas vêm sempre com atraso uma vez que só se podem preparar a partir das estirpes existentes. Como de um ano para outro há acumulação de novas mutações, não se consegue imunização contra as estirpes que surgirão no próximo período de incidência da gripe. Esta "arqueologia biológica" realizada nestes trabalhos, permitiu a descoberta de sequências genómicas que poderão estar envolvidas na virulência do vírus (codificantes para a hemaglutinina e para a polimerase) e na mudança de hospedeiro de aves para humanos (codificantes para a polimerase com origem no hospedeiro avícola). Se é este o fenómeno que faz despoletar o aumento de virulência do vírus, incluindo a capacidade de transmissão a humanos, então deu-se um passo enorme no combate a estas pandemias de gripe, nomeadamente na possibilidade de criação de vacinas contra estirpes altamente virulentas.

Uma questão interessante se levanta nesta investigação. Será sensato publicar estas sequências com potencial de aproveitamento bélico, nomeadamente para grupos terroristas? E ao não publicar, não haverá o risco de dificultar a livre investigação e atrasar o combate a uma pandemia que os peritos dizer estar iminente? No entender do corpo editorial da revista Science, a melhor decisão é a da publicação. Sustentam esta posição na impossibilidade de previsão do efeito de observações científicas no estímulo de criação de novos tratamentos para o controlo de pandemias. Ao não restringir a divulgação de observações científicas, contribui-se genericamente para o surgimento de novas descobertas com aplicação útil sendo, eventualmente, maior o benefício para a sociedade do que o risco de potencial aplicação bélica. Esta será, na minha opinião também, a melhor maneira de contribuir para a prevenção da pandemia.
(fotografia: Centers for Disease Control and Prevention, USA)

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