No último número da EMBO reports (vol7, nº3, 2006), Christof Tannert, membro do Grupo de Investigação para a Bioética e Comunicação de Ciência do Centro Max Delbruck para Medicina Molecular em Berlim, num texto duma clareza assinalável intitulado "Thou shalt not clone", faz a defesa da proibição da clonagem reprodutiva de seres humanos. O assunto é interessante sob o ponto de vista ético, social e científico e o tema é inevitável porque a tecnologia já foi aplicada com sucesso, sendo a sua aplicação a humanos uma possibilidade real (será mesmo uma realidade num futuro próximo - não, não dou crédito aos raelitas).
Coloca muito bem o problema, salientando os processos de recombinação genética na formação dos gâmetas e a variabilidade genética dos gémeos monozigóticos por acumulação de mutações e de histórias distintas de interacções com o meio. Parece-me, no entanto, que dá demasiada importância à ocorrência "natural" na formação de gémeos monozigóticos e ausência de uma acção deliberada na criação destes clones.
Se analisarmos bem a questão, a diferença entre gémeos monozigóticos e um clone com o respectivo progenitor é apenas na acção voluntária no acto da clonagem (a variabilidade provocada por mutações e por interacções com o meio aplica-se de igual forma aos dois casos). Nas palavras de Tannert: "Therefore, in the case of natural monozygote twins, there is no human resolution, no conscious decision, no arbitration by any other person. [...] The same holds true for a zygote created by in vitro fertilization [...]". Isto releva para a condenação do acto voluntário da criação de clones quando na natureza há, de facto, criação de clones humanos. Parece haver aqui uma sacralização do acto natural. Sinceramente, não vejo diferença entre dois clones produzidos ao acaso na formação de gémeos monozigóticos e na produção de clones por um processo medicamente assistido (decorreu nidação, gravidez e parto normais e, presume-se, educação dada pelo progenitor).
A questão ética que levanta, com citações de Kant, é a da autonomia do ser humano no sentido em que a sua carga genética não deverá ser condicionada voluntariamente nem o indivíduo ser instrumentalizado de acordo com a vontade de outros. Novamente nas suas palavras: "Every person must be as free as possible from the arbitrariness of others" ou "Our self-determination and our autonomy, and consequently the prohibition to restrict this autonomy arbitrarily by any other person, are among the basic ingredients of human existence". No entanto, há casos de quase perfeita instrumentalização de seres humanos pelo método de procriação sexuada como o de casais que geram um novo filho com o objectivo de criar um dador de medula óssea para outro filho (seu irmão) que necessita de tal transplantação. Não é precisa a clonagem para a instrumentalização de seres humanos. Obviamente, este não é um argumento válido. A questão é a de reconhecer ou não se em todos os casos de reprodução humana há sempre, em maior ou menor grau, instrumentalização do novo ser. É pois comum os pais exibirem orgulho nas parecenças físicas dos filhos, fazerem planos e condicionarem as escolhas profissionais e até sentimentais dos filhos, nas adopções há a tendência para se preferirem determinadas características raciais, etc.
Mas Tannert vai mais longe: "Cloning means using one person-the clone-as the means to fulfil the desires of another person: the clone generator". Esta é uma frase interessante. Para já reconhece implicitamente que o clone é uma pessoa ("...one person-the clone-..."). Depois há a designação "clone generator" (como "artificial construct" ou "artefact" que emprega noutras partes do artigo para designar os clones) que tem ressonâncias de cientista a brincar aos deuses e indicia um vício na análise do problema; será que um clone ao fim de um processo de gestação normal e de educação pelo progenitor não será um ser humano com todas as suas capacidades intelectuais e físicas? Finalmente há a satisfação pessoal do progenitor (o tal "clone generator") que aqui surge com conotação negativa. Então na reprodução sexuada não há também o uso de uma pessoa - o filho - para satisfação doutras pessoas - os pais? Não sei se Tannert já pensou muito sobre a paternidade (e maternidade): tenho muita dificuldade em julgar se as motivações de um casal que tem filhos por procriação sexuada são totalmente desprovidas de interesse ou egoistas, pois poderá ser para a sua (do casal) felicidade em primeiro lugar (e qual é o problema?) ou apenas para a criação de um novo ser humano autónomo.
Os argumentos apresentados por Tannert não me convenceram. Continuo com a mesma perspectiva que me foi fornecida pelo livro On Cloning (Routledge, 2004) de John Harris. Ou seja, há apenas um argumento forte para a proibição da clonagem reprodutiva, o da segurança. Reconheço no entanto que Tannert tem razão quando refere a subtítulo que a sua comunicação é um argumento ético contra a clonagem reprodutiva. É de facto ético o seu argumento porque trata-se de um argumento moral. Continuo a preferir argumentos racionais.
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